A grande caixa acústica
por Jean Narciso Bispo Moura
Em Meio aos ruídos urbanos, o livro mais recente de Fabiano Fernandes Garcez é um ótimo exercício de percepção, de escuta social, uma comunicação poética apontando o agudo fosso existente e naturalizado pelas narrativas conservadoras de dicção político-econômica e social.
Fabiano, no seu livro, mostra o retrato da injustiça, sem maquiagem, põe na tela o estado e as condições a que alguns humanos são submetidos. Na sua tela as pessoas sedadas não exibem estranheza e nem perplexidade frente a miséria alheia, o mundo é por ele fotografado, o autor comunica-se com fina ironia no acessível pavimento da linguagem. A palavra retrata a condição do indivíduo em meios aos ruídos e a grande agitação da grande cidade, e a sua percepção de solidão em meio a inúmeras vozes e presenças humanas, igualmente pensativas em si mesmas.
O grande ponto a ser destacado é a percepção do autor que identifica os grandes impeditivos da escuta, pondo refletores nas exorbitantes distâncias materiais entre grandes afortunados e os que possuem quase nada, tendo a possibilidade de viver dignamente surrupiada.
O livro de Fabiano catalisa os movimentos polifônicos, os assombros, diante desse turbilhão da vida urbana e estabelece um ponto de convergência.
O poeta, em meio aos ruídos, desvencilha-se da confluência anestésica, recua-se para ampliar a própria acuidade: as buzinas dos carros, os sons dos cantores e artistas de rua e de seus aglomerados, os passos apressados dos camelôs com suas bancas pré-moldadas para fugas; são cenários constituintes da agitação da metrópole, que são decifrados nas suas capilaridades.
No Ruídos urbanos, há flagrantes, nada escapa, até mesmo uma cena pericial e comum à atividade profissional da polícia científica é poeticamente capturada.
Nesta incursão pela urbe, ele cerca a realidade sem pôr lantejoulas ou muitas metáforas, a realidade ela como é; o poeta dá um passo adiante mostrando o fundo falso daquilo que vê.
Diante disso, desse conjunto de sons, Fabiano Garcez busca ver o som comum no emaranhado social, dizer que neste tumulto aparentemente sem sintonia, tem um bem orquestrado concerto.
Deste modo, o poeta vê a consciência coletiva em estado turvo. Os ruídos observados não são permissionários de nenhuma escuta crítica por parte da maioria da população oprimida; tudo é propositalmente dissonante. Ele registra um mundo ruidoso e a sua grande caixa acústica, deflagrador de uma desigual relação$social.
Os Ruídos da Alma e seus Diálogos Possíveis
por Mateus Machado
O
poeta e crítico literário Fabiano Fernandes
Garcez surge no panorama
da poesia do novo século, como uma voz prometeica. Professor de língua
portuguesa em um país e época onde o papel do Mestre tornou-se objeto de
descaso por parte dos governantes; o que acarreta dentre outras coisas, um
processo de fragmentação e transvalorização social que envolve principalmente
pais e alunos.
O poeta já nasce
condenado à marginalidade e ao descaso. Em parte, porque a consciência burguesa
(não necessariamente o burguês, enquanto personagem, mas a consciência
materialista/imediatista dominante) não consegue assimilar a Poesia como
alimento para o espírito ou ainda como expressão do espírito humano.
Fabiano
Fernandes Garcez talvez por não ter ainda assumido a
Poesia como Poder Pessoal, fogo, ainda que tenha sido roubado dos deuses ou
como bem colocou Henry Miller; que
o poeta que já não mais acredita no caráter divino de sua missão, inaugura sua
obra com o livro Poesia se é que há (Editora Scortecci, 2008). E o
poema de abertura, José Fica Quieto,
independente de sua estilística, é muito claro em sua mensagem; o homem moderno
é impotente em seu meio porque sabe, ainda que de forma inconsciente, que seu
mundo está doente. E diante de um mundo doente pela própria linguagem, o
silêncio talvez seja o melhor antídoto. Quando a morte não é a via de escape o
José pode chegar ao Fim do Dia,
vitorioso, “mas
com as marcas de quem mais apanhou”. E com humor, expõe verdades, como no
poema Formas Geométricas,
que diz que viver um “triângulo amoroso”
ou deixar de lado o controle remoto porque diante do vazio da TV é “Melhor ler um livro!”.
E ainda
resta o questionamento no poema Se Jesus Voltasse
Hoje, de cunho social. Embora à primeira vista pareça se tratar da
volta de um Jesus Salvador, diante do cenário apocalíptico do mundo, penso que
o poeta está querendo nos dizer que esse Jesus, o avatar ou Homem/Deus
arquetípico, está presente em cada ser humano. É a figura de um Jesus social,
holístico, em seu ecumenismo, para se evitar qualquer condenação.
Penso que o poeta Fabiano Fernandes
Garcez, já no primeiro livro, busca não apenas a sua própria linguagem
poética; trabalho que requer tempo, labor que requer labores & sabores, mas
esse poeta, ávido de vida, também deseja firmar essa linguagem em um dos
pilares da Poesia: A Simplicidade; coisa dificílima.
Há uma
preocupação com a língua e suas regras, há o burilamento da palavra. Há formalidade;
só não sei dizer se essa formalidade é de sua natureza, da influência de uma
poesia mais tradicional ou se faz parte de uma postura acadêmica. No entanto,
sinto que o poeta quer ultrapassar as barreiras, se libertar das convenções e
buscar o novo em seu próprio caminhar. A influência do poeta Carlos Drummond permeia tanto o primeiro livro como o
segundo, Diálogos Que Ainda
Restam (Editora Penalux,
2010). Outros poetas são vistos transitando de uma página à outra. Mário
Quintana passarinhará por muitas páginas.
Se no
primeiro livro o silêncio (imposto ou auto imposto por José) parece ser uma
alternativa em meio à tagarelice doentia, no segundo livro, o Diálogo se faz
presente como protesto, como via de conhecimento e autoconhecimento através da
troca, da participação do mundo. Aqui o poeta Fabiano Fernandes
Garcez, naturalmente mais amadurecido, entende que o diálogo, em sua
profundidade, pode ir além das palavras: não há diálogo no blábláblá. Se ainda
restam diálogos é porque o poeta ainda tem muito a dizer. E a Poesia, uma das
mais antigas heranças da Humanidade, é o diálogo profundo entre o homem e o
homem para que seja possível um diálogo ainda mais profundo, um religare, entre o
homem e o sagrado. Para tanto, será preciso acabar de vez com a palavra
corrupta e resolver os conflitos da herança mítica de Babel.
Em Diálogos Que Ainda
Restam, há capítulos e diálogos particulares. No poema Joguei Bola,
que considero uma pequena pérola, há o diálogo com a criança que vive no poeta.
No poema A Gaveta, a perda é tratada de maneira singela,
mas contundente. Alguns temas do primeiro livro retornam; espelhos, reflexos, a
solidão, o tempo, as águas, o diálogo com a própria poesia. Aqui há uma busca
pelo entendimento de Deus, de Sua Essência.
O tema social
aparece em vários momentos; em poemas como Ribeirinho e Nova Cantiga,
mostrando a nudez da realidade.
Os Diálogos
permanecem e continuam no segundo livro (deixando) Rastros para um
Testamento (Editora
Penalux, 2012), em seu terceiro livro; que é dividido em três capítulos. Em Rastros a
infância é novamente evocada logo no primeiro poema; Lobisomem; a
fera que mora ao lado da criança, revelando a parte selvagem, instintual do
poeta. A criança tem que crescer e nesse processo aprende que crescer dói, como
afirma o poeta em Dor de Perna.
No segundo
capítulo, Fendas, o
poeta nos diz no poema Escola, que
dormir, às vezes é melhor que estar atento, pois temos a chance de sonhar, seja
em uma sala de aula ou na escola da vida. Saber envelhecer também faz parte do
aprendizado.Testamentos,
o último capítulo, o poeta revela que os anjos “cegam quem os
encaram/ porque seus olhos são frios, nada dizem”. Tudo tem seu peso e sua
medida. Aqui se faz presente a responsabilidade e a culpa. O livro fecha com Obrigação e a amargura das Reminiscências que trazem à tona culpas e conflitos
mal resolvidos. O menino medroso se tornou homem feito,na busca da coragem
necessária para continuar a sua caminhada, poeta sem religião, expulso do Éden,
condenado a deixar os seus rastros gravados Em Meio aos Ruídos
Urbanos como prova e
redenção.
Assim o poeta Fabiano Fernandes
Garcez se reinventa em
seu quarto livro, Em Meio Aos Ruídos
Urbanos (Editora Patuá,
2015), como em um salto quântico para evoluir, deixando seu casulo para assumir
uma vestimenta nova, ainda fazendo uso da mesma viga mestra que vem sustentando
a sua poesia: A busca pela simplicidade. Mais ousado, dizendo mais com menos. E
apesar do excelente trabalho gráfico/fotográfico e da simbiose entre imagem e
palavra, a poesia aqui fala por si só; funcionaria sem perder a sua força,
ainda que estivesse só em página branca, editada de maneira tradicional. A meu
ver, a poesia de Fabiano Fernandes
Garcez já começa com a
dedicatória à cidade de São Paulo “berço e túmulo”;
evocando a força de um Destino.
Os pares
de opostos, fundamento do nosso Universo, serão encontrados em todo o livro. Já
na citação de Roberto Piva, nos é mostrado uma contradição: Se é “um poeta na cidade/
não da cidade” mesmo que São Paulo, a grande metrópole, venha a ser o “berço e túmulo”
do poeta.
Livro
dividido em 04 turnos. O primeiro, Sob o Raiar do Dia,
a grande metrópole vem tomar o seu café da manhã com o poeta. A primeira
revelação é que a inocência já não é mais possível - “Parabéns! Você virou
mocinha!”. E no segundo poema, Hora H, a
protagonista continua descobrindo e entendendo que o amor dói. No decorrer do
capítulo o raiar do dia vai iluminando a cidade e seus becos escuros, o preço
que se paga, a roupa velha, as águas da enchente, as ladeiras, as tralhas, as
vozes, o sexo e a miséria de cada um.
O segundo turno, Sol a fio, o
poeta revela que o mesmo sol que aquece e da vida, também queima e mata. Em
meio a todo o ruído da cidade com sua alma petrificada, saciar a fome do corpo
já não basta; a fome do espírito talvez seja mais complicada. Há os vícios e o
Ministério da Saúde Adverte: O Horror nasce dos horrores. Quem pagará pelo
prejuízo da vida? Do índio Kaiowá americanizado ao sorriso inútil. A cidade
anda de mãos dadas com a Demência. A carência social transpira pelos poros da
Metrópole.
O terceiro
turno, Ao Despencar da Tarde,
onde cada personagem anônima torna-se herói da miséria do mundo.
Chegamos ao
quarto e último turno, Queda da Noite,
quando os ruídos são outros, os ruídos dos subterrâneos. A cidade arde com a
poluição do que deixamos para trás, da chuva ácida, das águas do rio. A noite
cai porque é pesada como o concreto da cidade.
O projeto Gráfico
(Foto) e Textual nos dá a experiência única de tocar o coração negro da cidade,
suas ruas, suas construções e desconstruções, sua miséria e seus heróis
anônimos. No entanto, como dito antes, os poemas de Fabiano Fernandes
Garcez funcionam por si,
ora como um soco no estômago, ora como navalha na carne.
O que virá depois
deste livro? Voltar atrás me parece impossível, ao menos, improvável. Seja como
for, Fabiano Fernandes
Garcez parece estar
passando por um rito de iniciação. Creio que os vôos daqui em diante serão mais
altos, ousados e perigosos.
Em meio
aos ruídos urbanos
por
Emerson Moino Martins
Fabiano
Fernandes Garcez – poeta, crítico literário e professor. No começo um
baixista sem baixo, em banda de rock sem instrumentos, tentando escrever as
letras para suas músicas. Hoje um poeta consciente de seu projeto de poesia e
de seu papel como artífice.
A música talvez tenha ganhado quando ele fez a opção pela
literatura, mas a poesia teve de encarar artista briguento, o autentico lutador
com as palavras como Drummond descreveu em seu poema.
Travou sua luta no um fazer poético simples, mas não simplório. Em sua
trajetória de três livros, os seus três livros, Poesia se é que há, Diálogos que ainda
restam, Rastros para um
testamento, construiu poesia preocupada em dialogar com o cotidiano de
pessoas comuns e resgatar o lirismo contido em sua linguagem. Uma poética que
encontra sua beleza no macarrão, frango e guaraná de um almoço de domingo.
Em Em meio aos ruídos
urbanos, Fabiano continua o mesmo lutador com as palavras. Não
abandonou suas linhas mestras de uma poesia simples, mas não se acovardou em
reinventar sua forma de dizer. Teve a ousadia de fundir linguagens distintas, a
força da imagem com o poder das palavras, tomando o cuidado de evitar a
redundância nessa sobreposição.
Seus poemas são concisos, diretos como um soco no estômago. Reproduzem os
ruídos do ranger de dentes da metrópole que nos engole com indiferença. Sua
leitura tem voz dos gritos que estão nos muros da cidade.
Rastros
para um testamento
por Adams
Alpes
Roland
Barthes afirma, em Aula, que a língua é fascista, não por impedir a dizer, mas
por obrigar a dizer. Portanto, para mim, a poesia é anarquista. Para tanto,
Culler comenta, em Teoria Literária – uma introdução, que Platão expulsou os
poetas de sua república ideal somente porque poderiam fazer mal.
Em Rastros para um
testamento Fabiano rompe o
fascismo da língua e põe em crise os alicerces da poesia, mas sem
desestabilizar sua linguagem comunicativa. Com isso, Garcez alcança o sublime
na lírica, que Culler mostra ser a extravagância na poesia.
Nestas
páginas, a narratividade poética de Fabiano perpassa toda uma vida, trazendo
versos que ilustram a infância (“Rastros”), passando pela juventude e a fase
adulta (“Fendas”), chegando à terceira idade (“Testamentos”), registrando a
experiência humana do homem moderno, confirmando que esse narrar a experiência
ainda conquista seu lugar no mundo.
E ao
contrário do que afirma Walter Benjamin, em Magia e técnica –
arte e política, de que a poesia morreu depois de Auschwitz, silenciando o
homem ferido pela guerra a ferro e à bala, Fabiano empenha força em sua voz
poética, nos premiando com versos que carregam todo o lirismo da experiência
humana, mostrando que a poesia continua viva em todo o lugar, inclusive nos
gestos e momentos mais simples, sendo, portanto, tudo uma questão de
perspectiva, de como nossos olhos veem.
Além disso,
o poeta, ao retomar a experiência humana, nos remete aos poemas épicos, que
contavam a odisseia de um povo. No entanto, nesta obra, a odisseia realizada é
pessoal/individual de um sujeito em crise com seu tempo, nos revelando uma luta
para que a poesia não morra, mesmo que, segundo Platão, ela seja perigosa por
deixar o homem livre, inquieto e insatisfeito, pois, como diz Culler, a poesia
modela a valiosa experiência da passagem da ignorância ao conhecimento.
Portanto,
planto a seguinte pergunta: por que ler Fabiano e seu Rastros para um
testamento? Simplesmente porque é nos rastros de cada poema que o poeta nos
revela a experiência individual/coletiva de uma sociedade sem testamento para o
mundo.
Os
diálogos que ainda restam
Por Eryck Magalhães
Ao
debruçar-se sobre a história literária e estudar minuciosamente toda a sua
trajetória, deparamo-nos com uma imensa gama de textos, temas e estilos. Diante
disso, o impasse: Ainda restam diálogos? Ainda há o que contar? O poeta Fabiano
Fernandes Garcez, através de seus belos versos, mostra que sim, e o faz com
muita propriedade. Em seus “Diálogos que ainda restam”, poema a poema, o autor
revela a capacidade que a poesia tem de se reinventar.
No poema
“Diálogos”, o poeta aborda a banalização do uso das palavras, que por ora,
parecem vazias em si mesmas: “Não sinto a profundidade / em todos os diálogos”.
O bucolismo é outra vertente que também se faz presente, principalmente no
belíssimo poema “Minha preferida” o qual nos remete aos poemas árcades. Porém, o
eu-lírico, apesar de se mostrar saudosista, faz referência a seu tempo: “Ah!
Colhe flores / Hoje ninguém mais faz isso / Colhe flores!”. A inquietude do
homem contemporâneo consigo mesmo já é outra temática deste poeta
multifacetado, e para abordá-la, o autor lança mão da intertextualidade nos
poemas “Eu não sou eu” e “Sou nada”. Já no poema “Mulher”, a figura feminina é
literalmente divinizada: “Para mim, Deus é mulher”. Entretanto, um erotismo que
se mostra inocente permeia nos vãos dos versos: “de colo e seios fartos, para
nos confortar”. Em uma série de poemas sobre “As Lembranças de Minha Avó”, o
poeta faz sua reverência à importância que as mães de nossas mães tem em nossas
vidas.
Sem mais
delongas, que muitos outros diálogos ainda restem e que ecoem nos versos deste
poeta.
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